Os Apontamentos do Padre Caldas

Guimarães, cúria augusta do primeiro Afonso, berço notabilíssimo da monarquia portuguesa, assenta em prados verdejantes, que se alastram nas fraldas ocidentais da serra pitoresca de Santa Catarina: assim começava o Padre António José Ferreira Caldas a descrição da origem desta terra na sua obra “Guimarães, apontamentos para a sua História”, que, 126 anos depois da sua publicação inicial, continua a ser uma referência incontornável da historiografia local vimaranense.
O Padre caldas nasceu em Guimarães, na freguesia de S. Sebastião, no dia 3 de Fevereiro de 1843. Por ter nome exactamente igual ao de seu pai, um conceituado comerciante vimaranense originário de Vizela, era conhecido como António José Ferreira Caldas Júnior. Sua mãe foi D. Maria Maximina da Silva Caldas. Estudante brilhante, frequentou o Liceu de Braga e o Seminário do Porto, onde concluiu o curso de Teologia. No dia 11 de Junho de 1870, foi ordenado presbítero.
Desde cedo se envolveu activamente na vida da terra que o viu nascer, participando, nomeadamente, nas célebres festas dos estudantes vimaranenses a S. Nicolau. Nos anos de 1864 e 1865, recitou nas ruas da cidade, acompanhado pelos toques de tambores e zabumbas, o bando escolástico (o pregão).
Homem de letras, fez a sua estreia literária como autor dramático com a peça “Saudade, episódio de um reinado”, que escreveu com Nicolau Máximo Felgueiras e que se representou pela primeira vez no dia 11 de Março de 1869, no Teatro D. Afonso Henriques, repleto de público. As artes da escrita cultivou-as também na imprensa local, nomeadamente nos jornais Religião e Pátria, Fraternidade e Espectador, de que foi fundador e destacado mentor, no qual publicou diversos textos sobre curiosidades e assuntos da arqueologia e da história de Guimarães.
Em 1873, publicou um opúsculo dedicado ao culto da Penha (“Local e Gruta-Ermida de Nossa Senhora do Carmo da Penha”), de cujas belezas foi um dos mais destacados entusiastas. O produto da venda deste livrinho, que ofereceu à Irmandade da Penha, foi utilizado para custear a construção de um relicário, que seria concluído em Julho de 1880.
Orador sagrado proeminente, de verbo fácil e grande fluência, fazia ouvir a sua voz nos principais actos solenes que então tinham lugar em Guimarães, como no Te Deum que se realizou na Colegiada no dia 8 de Maio de 1870, comemorando o fim da Guerra entre o Brasil e o Paraguai, ou na celebração do Centenário de Camões, em 1880.
Participou activamente na defesa e valorização do património histórico e monumental vimaranense, tendo integrado, com Francisco Martins Sarmento, em 1874, a comissão que dirigiu o restauro da igreja de S. Miguel do Castelo, em parte custeada por subscrição pública. Esta operação de restauro iria tornar-se, para a posteridade, num caso exemplar de cuidado e rigor colocados na recuperação de um monumento histórico.
No início do mês de Março de 1882, foi distinguido com a nomeação para sócio efectivo da Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses. No dia 18 desse mês, seria também elevado a sócio correspondente da Real Associação de Geografia de Lisboa. Estes reconhecimentos vinham na sequência da publicação da sua monografia sobre Guimarães, trazida a público no ano anterior.
Guimarães, apontamentos para a sua história” resulta de um trabalho persistente de investigação sobre os anais de Guimarães e surge como pedra percursora da profunda renovação dos estudos da história local vimaranense que se fará sentir com o advento da Sociedade Martins Sarmento, nascida pela mesma altura. Até à obra do Padre Caldas, o conhecimento da história de Guimarães ficava-se essencialmente pelas velhas (e um tanto fantasiosas) “Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães”, do padre Torcato Peixoto de Azevedo, de 1692 (publicadas pela primeira vez em 1845), que foram replicadas pelo padre Carvalho da Costa na sua “Corografia”.
Na apresentação dos seus Apontamentos, o Padre Caldas expõe os motivos que o levaram a lançar-se naquela tarefa de reconstituição histórica: manifestar à terra, que me foi berço, a dedicação que lhe consagro, determinaram-me a gastar algumas horas de ócio a coleccionar estes apontamentos, que poderão servir um dia para a história de Guimarães. Pelas páginas desta obra, inicialmente publicada em dois volumes, passam a história, a geografia, a economia, o comércio, a indústria, a cultura, a arte, os documentos, as pessoas notáveis (em virtudes, em letras, em armas, nas artes), as festas, os monumentos, as instituições, a imprensa ou o teatro de Guimarães. Nos “Apontamentos”, António José Ferreira Caldas apresenta-nos um notável mosaico multifacetado, fundamental para a compreensão da realidade vimaranense, que oferece aos seus conterrâneos, sem atavios nem galas, mas tais como os encontrei na história, na tradição e nos arquivos pulverulentos.
A morte levou-o precocemente, no dia 22 de Julho de 1884, quando contava apenas 41 anos, não dando tempo a que concretizasse um projecto grandioso que tinha entre mãos: escrever e publicar um estudo que abrangesse todas as freguesias e lugares do concelho de Guimarães, a cujo estudo se dedicava, coligindo notícias e compulsando documentos.
Já passaram mais de 125 anos sobre a data da primeira publicação dos “Apontamentos” do Padre Caldas. Desde a altura em que foram escritos, sucessivos avanços alteraram profundamente o nosso conhecimento do passado. A historiografia aperfeiçoou os seus métodos, elevando a História à condição de ciência. Porém, ainda hoje, mesmo carregando o peso de mais de um século, a obra de António José Ferreira Caldas permanece como a melhor e mais completa monografia histórica de Guimarães alguma vez escrita.

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